20 janeiro 2010

Ela se encolheu dentro do sobretudo preto. A noite estava fria e aquele beco escuro era extremamente úmido. O vento canalizado que assobiava ao entrar ali parecia uma maré de más energias. Mas nada disso importava muito, ela só pensava mesmo na demora dele. Por que ele estava demorando tanto? Por que ela tinha que esperar tanto? Algo poderia ter saído errado?
Não, não tinha como ter dado errado. Eles tinham esquematizado tudo com muita paciência e precisão... Era o plano perfeito! Tinha dado certo, certeza, ela afirmou pra si mesma. Ao menos sua parte tinha dado certo. Quanto à parte dele... Bom, por isso ela não se responsabilizava, era um problema todo dele. Ela tinha feito tudo exatamente como o combinado, queria sua recompensa. Como ele iria arrumar uma recompensa se tivesse se saído mal? Aí estava outro problema que não era dela. Ela só queria sua recompensa. E queria o mais rápido possível, pois assim poderia se ver livre de toda aquela situação logo.
De repente, ouviu passos apressados e uma respiração ofegante. Sentiu o coração disparar. Podia estar em perigo. Será? Quando ela foi se esquivar para dar uma olhada na rua, antes deserta, ele virou a esquininha do beco, parando de correr com um baque surdo na parede. Enquanto ele recuperava o fôlego, ela lhe passou um sermão abafado e lhe fez inúmeras perguntas aos cochichos. O pânico que se instalara dentro dela ao pensar que podia estar em perigo tinha sumido, e agora só havia impaciência e sede de informações.
Sem se preocupar muito com o que ela dizia, ele sentou no chão meio úmido e fez o coração desacelerar da corrida. Acalmou as pernas e os pulmões. Quando se estabilizou, colocou a mão dentro da jaqueta de couro e sorriu triunfante ao constatar que o pacote ainda estava dentro do bolso interno. Ainda sorrindo, se levantou e a olhou pela primeira vez desde que tinham saído de seu apartamento naquela noite, com todo o plano em mente. O breu do beco dificultava sua visão, mas constatou o quão bonita ela estava. Indiscutivelmente indignada, mas ainda assim estupidamente bonita. Talvez fosse o sobretudo, talvez fosse o ar de indignação ou mesmo pavor, talvez o mistério e a tensão da noite... Ele não saberia dizer.
Que diabos! Ela o repreendeu por ainda estar calado e, ainda por cima, tão sorridente. A situação não pedia sorrisos, mas sim explicações, informações, resultados. Com uma calma que era naturalmente dele, ele explicou a ela nada além do necessário - achou melhor deixar de fora sua fuga por um triz, afinal não precisava de mais sermões - e no final, tirou de dentro da jaqueta o tão estimado pacote. Quase viu os olhos dela brilharem numa mescla de orgulho e alívio. Sem mais demora, ela foi logo exigindo sua recompensa. Apressada como sempre, ele pensou rindo por dentro. Colocou a mão dentro do pacote e entregou a ela uma parcela do conteúdo.
Menos que a metade, menos que o combinado. Cachorro! Ele soltou uma gargalhada, sem se preocupar com o silêncio que tinha que manter. Gostava de vê-la nervosa. Tirou de dentro do pacote mais uma parcela. Ela conferiu o que tinha em mãos e guardou num dos bolsos do sobretudo, aparentemente satisfeita. Deu uma olhada no belo relógio de prata que mantinha no pulso e soltou um longo suspiro. Achou melhor se despedir e ir embora antes que ficasse muito mais tarde. Ele, guardando o pacote dentro da jaqueta novamente, se ofereceu para acompanhá-la até o apartamento. Alegou que não era mais seguro, àquela hora da noite, uma moça ir pra casa sozinha. Pensou que o argumento escondia as segundas intenções gritantes na voz e na face. Ela subiu a gola do sobretudo e, com uma risada deliciosa acompanhada do som provocado pelo salto alto contra o asfalto, virou a esquininha do beco.
Por isso preferia trabalhar sozinha.

Contabilizando Crimes, capítulo 12, pagina 91.

18 janeiro 2010

O destino é fedido.
Tive certeza absoluta disso quando senti a marretada que foi toda aquela situação horrorosa. Sempre acreditei em destino, e desde o início, que você fosse o meu. E veja, que destino maldito! Foi uma peça - de mal gosto e meio torta - que a vida me pregou, e agora sei que o destino é só uma coisa que um romântico bobão inventou. É tudo charlatanice.
Mas no amor ainda acredito, porque esse eu duvido que seja assim corrompível.


pág. 93, O amor e flocos de neve.

11 janeiro 2010

João sabia que o bico e a cara amarrada eram artifícios meus que não duravam mais que dez segundos. Ele se divertia muito com isso. Por isso fazia aquela cara despreocupada que me dava nos nervos e fingia não notar minha irritação gritando em meus olhos lacrimosos. Por dentro eu sentia estar prestes a explodir! Ele sabia que minha resistência se desfazia fio a fio e logo eu estaria totalmente desarmada, esperando que ele se aproximasse e me beijasse. Me desarmei, então. Mais rápido do que ele esperara. De que adiantaria resistir por mais um segundo ou dois se em nada alteraria o resultado? Desfiz meu bico e comecei a sorrir, corando as bochechas. Como eu era boba perto de João! Ele riu, fez pose de difícil. Depois caminhou lentamente em minha direção, pegando minha mão e beijando-me os dedos. Meu sangue ardeu quente nas bochechas e o abracei, encostando meu coração no dele. O som dos dois batendo juntos era a coisa mais linda que eu já ouvira.


Pág. 51, Quando é amor.

07 janeiro 2010

Não suportando a dor, enfiou uma faca no peito. O torpor impediu-lhe de sentir o tormento do ato e, depois de feito, ele apenas sentia o alívio que escorria em meio a seu sangue quente. O corte era profundo, rente ao coração que pulsava cada vez mais lentamente. Os olhos demoravam ao piscar, as mãos afrouxavam e o vazio ocupava a mente. Um suspiro, derradeiro. Um final, apenas. Ele não mais estava entre a gente.


Página 215, A morte fala mais alto.

06 janeiro 2010

As formigas me vinham sempre. Por hora eu cutucava e fazia o assobio de chamado, por outra eu nada fazia, jazia o meu corpo na sombra da luz, ignorando a vida que tinha na minha carne, o gosto da pele que elas ansiava, as de carne. Esperava ansioso por aquelas que não queriam me tirar um pedaço carnal com seus dentinhos miúdos, partindo comigo por entre os dentes e deixando um pedaço da pele vermelha, como se tivesse tocado fogo. A coçeira era o castigo, a dependência de mim mesmo, das unhas em toco, das falanges pra me coçar e dar prazer, onde da ferida nascia o sumo. "É o proposito da pequena criatura?" tic taqueava martelantemente o meu pensamento "vir aqui me marcar e me deixar comigo, ao abandono da noite, do dia, até do meio da tarde". Mas elas sempre voltavam, sempre. As formigas voltam para o que lhe interessam, pode não ser um pote de açúcar, como diz a lenda, ou talvez seja ele enterrado no corpo da vítima em lugar distante jamais pensado por ela. Jamais pensavam em alcançar cavidades latentes latejantes gritantes sanguíneas. Jamais aventuraram-se além corpo além ventre, sentido coração. Talvez pela cor vermelha viva do sangue. Pelo medo do coração ter um gosto mais saboroso que aquele da carne que apodrece na batida do tempo na vida. Na frente dos olhos de um ser é difícil encontrar um formigueiro com nome próprio e inquilino que pague aluguel em dia, esse não é em dinheiro. Do amargo ao diabético, a preferência das garras se dá por um deslize no lado esquerdo da língua, no lado esquerdo do peito. Repleto de marcas é aquele que tem um coração mais doce que o normal, porque ele dança com a vida conforme os compassos, e se torna uma vítima banal das tentações fatais. Esse tal aprende a desamar e criar um riso voluptoso e um abraço em 360 graus a cada pedaço de carne levado pelas formigas de pele preta, as mais audaciosas da face da terra.

Artigo 1,76
Estudo somático
Experiência 1 - Austrália, Liverpool 1964

04 janeiro 2010

O amor escorre, se perde, transforma-se em traços de rugas. Quando já não há espaço pra acomodar tantas delas - traços de amores passados. O amor se veste de lágrimas e permanece escorrendo, se perdendo, livre e sendo..

Porque quando eu fecho os olhos são eles – meus amores, quem eu vejo. São todos eles que passam feito filme em minha mente, todos apertados no espaço pequeno que é meu reservatório de amor. Meus olhos, projetores cinematográficos, visualizam os donos das marcas que me enfeitam. E o que vejo cai na boca, e tem o sabor íntimo levemente salgado da lágrima dos amores que se perderam no espaço e não mais voltarão a acomodar minha vida. Do alto para o mais baixo de mim vou me atirar. Abrirei meu corpo, minhas pernas no asfalto e correrei.. Só paro de correr quando estiver longe, tão longe que o eco demore a chegar. E lá terei a certeza de que não estarei em paz enquanto eu souber e tiver amor pra receber ou dar. Esse é o meu jeito de me perdoar e voltar a amar.



O tal do amor, zero

03 janeiro 2010

O pirulito em minha boca ficara salgado. Não percebi que engolia minhas lágrimas para que tu não percebeste a lança fina e afiada que enfiavas no meu peito. As palavras ecoavam em minha mente, girando em minha cabeça e eu queria tapar os ouvidos para que a dor que elas provocavam parasse de latejar em mim. Tu me olhavas aparentemente despreocupado, com aquela sorriso maroto no canto dos lábios, tão típico teu, despejando aquele teu falar relaxado, cheio de gírias, enquanto o cigarro aceso ardia na mão direita - a única pista do teu desconforto em me deixar. Eu sempre soube que te causava esse nervosismo que te fazia fumar ao lidar comigo. Também sabia que o teu coração há muito já pulsava em minhas mãos. Mais até que o meu, nas tuas. Só não pensei que a liberdade que arfava no bater das asas do teu coração aventureiro fosse mais forte que o segurar das minhas mãos. Menti, então, um "tudo bem" engasgado e sai andando, sem olhar pra trás. Às minhas mãos, agora vazias, só restavam segurar os cacos do meu coração que se despedaçava.


pág. 142, O violeiro.